Histórias da infância
Você já reparou como as pessoas,principalmente os adultos,gostam de
relembrar fatos da infância e contá-los a familiares e amigos?
Leia o relato de Daniel Munduruku e veja como ele conta em detalhes uma
passagem de sua vida.
'O saber das avós'
Às
mulheres mais velha chamamos de avós.Todos são nossas avós,e temos muito
respeito por elas.São pessoas especiais,experientes,bondosas.Sabem acolher como
ninguém e nada passa despercebido a elas.Funcionam como "antenas" da
comunidade,pois sabem ouvir a dar conselhos a todas as pessoas.
Elas têm um carinho especial pelas crianças.Gostam de ensinar,contar
histórias enquanto tecem os cestos ou confeccionam artefatos de barro.
Lembro de um dia em que cheguei junto de minha vó enquanto ela
confeccionava um cesto novo.Seus dedos ágeis teciam as talas de bambu com tanta
velocidade que era difícil acompanhá-la.Quando notou minha presença,convidou-me
para sentar.
-Como vai o meu neto hoje?
-Estou bem,minha vó.
-Não diga que está bem quando você não está.O que aconteceu?
-Briguei com meu melhor amigo.Não foi por querer,mas ele me chateou muito.
-O
que aconteceu para você ficar tão magoado?
-Ele disse que eu não era corajoso como ele.
Ao
ouvir minhas palavras,minha vó levantou-se da esteira onde estava e veio ao meu
encontro.Sentou-se num banquinho de toco de árvore e pediu-me para sentar no
seu colo,pois queria ver se eu tinha piolhos.Obedeci.
-O
que você acha que levou seu amigo a dizer isso a seu respeito?
-Não
sei.Acho que pode ter sido por causa da menina Kaamá.
-Ele disse isso para você na frente de Kaamá?
-Disse,sim.Eu fiquei envergonhado e muito bravo com ele.
-Compreendo.Apenas acho que ele não fez por mal,ou porque não gosta de
você.Ele apenas viveu um momento infeliz.Você precisa procurar seu amigo e
conversar com ele.
-Não estou com vontade de conversar com ele nunca mais.
Você está crescendo,meu neto.Já é quase um homem e precisa encarar os
desafios de frente,sem correr ou se esconder deles.Precisa entender que as
pessoas erram.Algumas vezes erram sem ter noção de que estão fazendo algo
ruim.Os amigos às vezes cometem erros também.
-Mas,vó,ele sabe que eu gosto de Kaamá.Por que ele foi dizer isso logo
perto dela?Assim ela vai achar que eu não sirvo para ser seu namorado.
Minha avó deve ter sorrido por sobre minha
cabeça.Senti seu peito sacudir meu corpo.Era um sorriso de compreensão.Ela já
devia ter ouvido tantas vezes essas conversas que pensava como a história das
pessoas se repete.Afagou meus cabelos compridos com muito carinho.
-Não há o que eu lhe diga que possa diminuir sua desconfiança.Só você
poderá resolver isso junto com seu amigo e com Kaamá.Se fixer isso,nada ficará
entre vocês,e aí verão que a melhor coisas é resolver o conflito que se
instalou.Se não quiser fazer isso,tudo bem,mas lembre-se de que é dessa forma
que demonstramos coragem.É porque coragem não é só enfrentar onças e
surucucus,e bichos ferozes ou espíritos da floresta.Coragem é a gente olhar
para dentro de si mesmo e ser capaz de tomar as atitudes mais adequadas para
viver bem.Compreendeu,meu neto?
-Fiz que sim com a cabeça e percebi que era hora de ir embora.No caminho
topei com meu amigo.Ele me olhou desconfiado.Talves achasse que eu ia brigar
com ele.Não fiz isso.Eu o abracei e fomos brincar no igarapé.
Daniel Munduruku,Catando piolhos,contando
histórias.São Paulo:Brinque-Book,2006. p,37-39
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